Bolsonaro e Guedes: inimigos do serviço público; inimigos do povo
A reforma administrativa toma velocidade, no auge da pandemia e do caos no sistema de saúde. A desestruturação da complexa cadeia de serviços públicos, em momento tão crítico, é o projeto ultraliberal de Bolsonaro e Guedes. A PEC 186 foi a primeira batalha.
Por Márcio Vargas e Ricardo Souza
Após comprar as eleições da mesa diretora do Congresso Nacional, com R$ 3 bilhões em emendas parlamentares e um sem número de altos cargos distribuídos, é hora de cobrar a conta: o desgoverno Bolsonaro quer, sem perda de tempo, o fim do serviço público (isto é, a inviabilidade da execução de políticas públicas) e o estrangulamento do “gasto social”, inclusive em saúde e educação.
O desejo de Guedes em pinochetizar o Brasil não é mero fetiche, mas um sofisticado plano endossado pelos oligopólios de comunicação, os cães fiéis do mercado financeiro, que abominam e demonizam o serviço público com o simulacro dos privilégios dos servidores públicos e da ineficiência na prestação dos serviços. No cardápio estão as privatizações para entregar o filé ao mercado, o desinvestimento para cumprir os compromissos com os serviços da dívida pública espúria e a precarização para inviabilizar a consecução de políticas públicas.
Incapaz de executar R$ 80 bilhões do “Orçamento de Guerra” de 2020 (R$ 22,3 bilhões em vacinas não adquiridas), coloca em acelerada marcha de tramitação propostas desestruturantes de uma complexa cadeia de serviços públicos prestados ao povo em geral (PECs 186, 187 e 188 de 2019 e, em breve, a PEC 32/2020). Na mesma toada, reitera a opção do lucro em detrimento da vida, no momento em que a pandemia do COVID-19 se agrava, optando por chantagear com um auxílio-emergencial reduzido (em valor e duração) para justificar o descalabro das medidas.
A pinochetização do Brasil
Contrariando as evidências, por exemplo, da indispensabilidade do Sistema Único de Saúde no enfrentamento à pandemia, a ânsia na aniquilação do serviço público e as funções sociais do Estado estão materializadas no pacote de projetos que compõem a Reforma Administrativa. Tudo no intento de descaracterizar os avanços e as conquistas efetivadas da Constituição de 1988, Paulo Guedes, o Chicago Boy, inspira-se no regime militar chileno ao propor redirecionar o Estado para uma política subsidiária.
A Ditadura empresarial-militar chilena, impôs uma série de contrarreformas e privatizações, com o fim da gratuidade na educação e na saúde, bem como o regime de capitalização da previdência. Por isso, a agenda econômica ultraliberal de Guedes e o discurso de ódio e anti-democrático vocalizados por Bolsonaro, atuam em perfeita simbiose para avançar a agenda privatizante, com o respaldo da grande mídia que demoniza os servidores públicos para legitimar projetos prejudiciais a todo o povo que trabalha para viver.
Para consecução deste plano, é imprescindível calar as lutas sociais e deslegitimar todas as instituições democráticas e republicanas do nosso país. Este projeto de Estado foi refutado pelo povo chileno em 2019 e 2020, uma mobilização popular que enfrentou a dura repressão dos carabineros e conquistou o plebiscito constituinte, com 80% dos votos contra à constituição pinochetista. Ou seja, um projeto amplamente rejeitado por quem viveu suas consequências nas últimas décadas.
Segundo o Banco Mundial (2017), o Brasil “gasta muito e gasta mal”, legitimando os ataques às políticas sociais, como foi a “reforma” da Previdência; as parcerias com o setor privado e cobrança de mensalidades no Ensino Superior (Future-se); a desvinculação do orçamento da saúde; e a redução salarial do funcionalismo.
No relatório “Um Ajuste Justo”, os servidores públicos são os “bodes expiatórios” para avançar na agenda privatizante, o Banco Mundial alega salários médios “muito acima” dos da iniciativa privada, omitindo o arrocho salarial, os 13,5 milhões de desempregados, os 5,8 milhões de desalentados e os 40 milhões de trabalhadores na informalidade (IBGE, 2021). Verdadeira manipulação, pois segundo o DIEESE (2020), a maior parte dos funcionários públicos (57%) tem rendimentos concentrados na faixa de até 4 salários mínimos, ou seja, de até R$ 4 mil, e 23% recebem até dois salários mínimos. Nenhuma das propostas de reforma atinge as cúpulas do aparelho de Estado como militares, magistrados e parlamentares.
Serviço público faz diferença
Do ponto de vista da gestão central, o Brasil é um antiexemplo no combate à COVID-19, entretanto, o serviço público tem evitado uma tragédia ainda maior. A despeito da orientação negacionista e irresponsável do Governo Federal, os trabalhadores e as trabalhadoras do SUS atuam para garantir atendimento gratuito e universal, mesmo diante do colapso no sistema de saúde.
A importância do serviço público de saúde no Brasil está nítida. E também devemos lembrar o papel que institutos públicos de pesquisa como o Instituto Butantan e a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) cumpriram no desenvolvimento de vacinas e no acompanhamento da pandemia no país, subsidiando ações e políticas públicas em todos os níveis. Além disso, foi a USP, universidade pública, que desenvolveu tecnologia para respiradores quinze vezes mais baratos que o mercado, e de rápida produção.
Por outro lado, Caixa Econômica Federal e Correios, com sua estrutura logística, capilaridade e compromisso público, contribuíram decisivamente para a conjuntura não ser pior. Mesmo com as não-ações ou ações desastradas do Governo, os Correios fizeram chegar as ainda escassas vacinas a longínquas localidades, a Caixa assegurou o pagamento do auxílio emergencial, com base nas informações de outra instituição pública, o INSS. Como imaginar o que seria do Brasil neste momento sem o SUS, a Caixa Econômica Federal, os Correios, a Fiocruz, o Instituto Butantan, a USP, o INSS? Mais uma demonstração de que a ideologia da privatização se baseia em falácias para questionar o serviço público e legitimar seu sucateamento em benefício de interesses privados.
PEC Emergencial: 1º tempo da luta contra a reforma administrativa
Apesar do nome, a PEC 186 foi apresentada em dezembro de 2019, logo após a aprovação da “reforma” da Previdência, como parte do “Plano mais Brasil”, ou seja, anterior a pandemia e a qualquer projeto de Auxílio Emergencial. O objetivo é avançar em uma contrarrevolução neoliberal do Estado Brasileiro, por meio de três Propostas de Emendas Constitucionais (186, 187 e 188): criação de gatilhos de redução de salário de servidores; fim de fundos públicos, como o FUNDEB; e à desvinculação dos percentuais mínimos do orçamento das políticas sociais Educação e da Seguridade (Saúde, Assistência e Previdência).
O “Plano Mais Brasil” não avançou pelo receio dos “ventos andinos”, o alastramento da pandemia e as eleições municipais. Ganhamos tempo, porém enfrentamos uma conjuntura ainda mais complexa, com o governo deliberadamente disseminando o coronavírus. Em quase um ano foram 260 mil mortes, consequência do negacionismo, a não garantia de isolamento e nem de vacinação para todos. Pelo esforço da oposição foi aprovado um auxílio emergencial de R$ 600, mas não acompanhado de outras medidas, como o lockdown.
Chegamos em 2021 na fase mais grave da pandemia. Sob pretexto de prorrogar o auxílio emergencial, o governo “requentou” a PEC “Emergencial” (com a confusão proposital até no nome), agregando elementos das três propostas que antes compunham o plano e pressionando a população: ou auxílio, ou saúde e educação. As propostas para o desmantelamento dos programas sociais, mesmo antes da pandemia seriam absurdas por si, mas com a necessidade de compra de insumos, pesquisa, produção e distribuição de vacinas, contrastando com a penúria dos 63,5 milhões de brasileiros que receberam o auxílio emergencial em 2020, passou a ser uma evidente chantagem.
A PEC “Emergencial” também antecipa a Reforma Administrativa, ao propor o congelamento de concursos e progressões salariais,com redução de salário em 25% dos servidores e servidoras municipais, estaduais e federais. Tudo em nome da austeridade fiscal e o pagamento de juros e amortizações da Dívida Pública, evidenciando a visão do governo de que o lucro dos banqueiros está acima da vida.
A pressão dos movimentos sindical e social resultou na retirada da redução de 25% e da desvinculação do orçamento das áreas sociais na tramitação do Senado. Duas importantes vitórias da luta, apesar das dificuldades impostas pela pandemia. Porém, a Câmara manteve, os gatilhos fiscais para congelamento dos concursos e de reajuste salarial para os próximos 15 anos, caso não cumpra a “sagrada” meta fiscal, tanto para municípios, estados e a União, agravando as consequências da Emenda 95 (conhecida como PEC do Teto, PEC 241 na Câmara, PEC 55 no Senado, ou, simplesmente, PEC da Morte). Por pressão dos trabalhadores da segurança pública houve supressão do congelamento das progressões dos planos de carreira, mais uma redução de danos que sinaliza que haverá resistência contra a Reforma Administrativa, mesmo na pandemia.
Com o cerne da proposta intacta, somado ao atropelamento da pauta e a ilusória aprovação de R$ 44 bilhões para o auxílio emergencial (enquanto foram R$ 300 bilhões em 2020 7 vezes menor), impõe desafios para mobilização com o acirramento da pandemia.À Chantagem cortou recurso do serviço público, reduziu o auxílio drasticamente e cobriu menos gente, mas os bancos continuam lucrando. Precisaremos lançar mão de todos os meios viáveis (tuitaços, panelaços, bicicletaços, carreatas…), acompanhados de construção de base e, principalmente, fazendo a disputa mais ampla na sociedade, elencando as gravíssimas consequências não só para nossas categorias, mas para toda a classe trabalhadora.
Derrotar a reforma administrativa para manter as funções de Estado e a estabilidade
A PEC 32/2020, chamada de Reforma Administrativa, prevê alteração nos princípios constitucionais da Administração Pública, com a inclusão do princípio da subsidiariedade, inspirado na ditadura chilena, priorizando a iniciativa privada na prestação dos serviços hoje públicos, com o poder público atuando apenas naquilo que não é de interesse do mercado.
A proposta atinge todos os poderes e esferas de governo, em especial os trabalhadores diretamente envolvidos nas políticas sociais, mas não atinge a alta cúpula do aparelho de Estado: parlamentares, magistrados, desembargadores, militares, auditores, diplomatas entre outros, chamados pela PEC como “Carreiras Típicas de Estado”, ou seja, na visão destes, que não estão passíveis de terceirização ou privatização.
Existem verdadeiras “pegadinhas” na PEC 32: o ingresso no serviço público segue por concurso público, porém, desfigurando o Regime Jurídico Único (RJU), pois o estágio probatório se torna etapa do processo seletivo para as carreiras “não típicas”, chamado de “período de experiência”, impõe a concorrência entre os colegas para assumir a vaga no órgão, delegando à chefia o papel de decidir quais ingressam efetivamente, ou não. Desta forma, o vínculo passa a ser considerado de “tempo indeterminado”, como se fossem “passíveis de privatização”, sem a garantia da estabilidade.
A proposta aprofunda os dispositivos de demissão por insuficiência por avaliação de “desempenho”, ainda que adquirida a estabilidade, por isso, é ilusório acreditar estarem protegidos da Reforma Administrativa os atuais servidores. Guedes deixou claro seu ódio ao funcionalismo (“os parasitas”), portanto, as avaliações tendem às mesmas características de perseguição político-ideológica, como a ocorrida contra o ex-reitor da UFPEL. Nenhuma destas medidas são de gestão, mas de retomada de velhas práticas clientelistas e patrimonialistas, abrindo caminho para novos escândalos como o das “rachadinhas”.
O lobby corporativo não é capaz de esquivar da proposta as categorias indesejadas pelo governo, como foi o caso da tentativa de inclusão da Carreira do Seguro Social (do INSS) entre as Carreiras Típicas de Estado, por meio das emendas 81 e 82 à PEC 186, no Senado, refutadas pelo relator por entender ferir a isonomia entre os servidores públicos. Aliás todas são típicas de Estado, não há porque segregar
O projeto precisa ser derrotado em seu inteiro teor, pois a PEC 32 autoriza alterações constitucionais que viabilizam, simultaneamente, atingir inclusive “direitos adquiridos” pelos atuais servidores por meio de leis ordinárias e complementares, com a criação de sistemas de gestão de desempenho e demissão de servidores estáveis, bem como a alteração da estrutura remuneratória e das carreiras. Se não bastasse, a simples cisão do Regime Jurídico Único dificulta a mobilização em uma fragmentada estrutura sindical do serviço público, necessária para enfrentar estes ataques.
Esta luta é de todos!
Conquistamos vitórias fundamentais ao desidratar a PEC Emergencial, mas apenas com mobilização de base e independência de classe teremos condições de derrotar o plano de austeridade por inteiro.
Precisamos ampliar a mobilização com unidade das servidoras e dos servidores públicos municipais, estaduais e federais com a população usuária dos serviços públicos. É fundamental compreendermos que não se trata de uma pauta meramente corporativa, de defesa das nossas carreiras e direitos. Cabe disputar a narrativa sobre a importância de serviços públicos e gratuitos para a população que enfrenta condições de vida e de trabalho piores, com o desemprego, a informalidade, a carestia e, para agravar, a pandemia de COVID-19. Para vencermos essa pandemia será necessário fortalecer o serviço público, não o contrário. O que de fato é emergência neste país não é ampliar o ajuste fiscal, mas é o Lockdown com Auxílio Emergencial, Vacina para Todos e Fora Bolsonaro!
Márcio Vargas é militante do MES e da TLS em Florianópolis. É Técnico do Seguro Social no INSS e Diretor de Base do SINDPREVS-SC. Ricardo Souza é doutorando em Serviço Social, técnico-administrativo da UFRGS, coordenador jurídico da ASSUFRGS – Sindicato, militante do MES/TLS e do PSOL-RS.